From Ground Zero
Por Peter Pedro
“From Ground Zero” é uma obra rara que desafia superlativos. Nenhuma descrição parece capaz de captar totalmente sua profundidade e impacto. Trata-se de uma antologia composta por 22 curtas-metragens criados por palestinos vivendo na Faixa de Gaza, ocupada por Israel. Esses filmes variam entre documentários, dramas roteirizados e híbridos, evocando o espírito do Neorrealismo italiano, movimento artístico que emergiu das ruínas da Segunda Guerra Mundial, transformando a dor e a resiliência humanas em arte.
Sob a direção e produção de Rashid Masharawi, “From Ground Zero” é mais do que um marco cinematográfico. Não é apenas sobre o caos e a destruição, mas sobre a força da criatividade e da humanidade em condições impensáveis. Assim como muitos documentários sobre a Ucrânia lançados após a invasão russa, o filme nos transporta para o cotidiano de uma tragédia humanitária em tempo real. Vemos um povo enfrentando bombardeios constantes, a destruição de infraestruturas civis e a perda de vidas inocentes, incluindo crianças. Mas “From Ground Zero” vai além do registro do horror; ele mostra que a arte não só sobrevive, mas floresce, mesmo em meio aos escombros.
A maioria das filmagens foi feita com iPhones, mas alguns cineastas, presos em Gaza desde outubro de 2023, utilizaram câmeras profissionais. Muitos cineastas escolheram enquadramentos em CinemaScope, uma escolha deliberada que ecoa a mensagem: mesmo sob condições extremas, eles continuam criando cinema, não vídeos amadores ou clipes de internet.
A Força das Histórias
A construção de narrativas complexas é quase impossível nas condições de Gaza, onde a luta pela sobrevivência domina o dia a dia. Muitos dos curtas mostram cenas de pessoas desmontando casas destruídas para usar madeira como combustível, seja para cozinhar, purificar água ou se aquecer nas noites frias. O zumbido incessante de drones israelenses é o som de fundo da maioria das histórias, um lembrete constante da vigilância e da ameaça de ataques. Em quase todas as narrativas, os personagens perderam membros da família, e cada curta-metragem nos deixa com uma sensação de urgência, uma observação pungente ou uma imagem inesquecível.
A antologia se assemelha a um compilado de poesias visuais, cada uma capturando fragmentos de vidas interrompidas e reconstruídas. “From Ground Zero” não é apenas um filme, mas um testemunho coletivo.
Destaques Emocionantes:
- “Heaven’s Hell” (Karim Satoum): Um homem acorda dentro de um saco de cadáveres, sem saber como foi parar ali. Durante o dia, ele caminha pelos escombros e, à noite, volta ao saco, como se estivesse morto em vida. A metáfora é poderosa e devastadora.
- “Everything is Fine” (Nidal Damo): Um comediante se recusa a abandonar sua arte, apresentando-se nas ruas em meio aos destroços. O curta mostra sua resiliência enquanto ele transforma tragédia em humor, mesmo banhando-se em um chuveiro improvisado antes de suas apresentações.
- “The Teacher” (Tamer Nijim): Seguimos um professor que percorre as ruínas de seu bairro, tentando manter algum senso de propósito em meio ao caos.
- “School Day” (Ahmed Al Danaf): Um menino órfão caminha até sua escola todos os dias, mesmo que tudo o que reste dela seja uma pilha de entulhos. Um memorial improvisado marca o local onde seu professor foi morto.
- “Soft Skin” (Khamis Masharawi): Um animador ensina crianças órfãs a criar histórias com animações em papel. Elas transformam suas experiências traumáticas em um curta-metragem, sincronizando o som de explosões reais com recortes de papel representando os bombardeios.
- “Flashback” (Islam El Zeriei): Uma jovem descreve a destruição de sua casa e a perda de sua família enquanto lida com PTSD. Ela compartilha detalhes sobre sua “bolsa de emergência”, sempre pronta para fugir a qualquer momento.
- “Out of Frame” (Neda’a Abu Hasna): Uma pintora continua a trabalhar em seu projeto de graduação, mesmo após a universidade ser destruída em um ataque.
A Poesia da Resistência
O curta mais simbólico, “Sorry, Cinema” (Ahmed Hassouna), reflete a dor de um cineasta que sente que não pode continuar sua arte enquanto luta pela sobrevivência. No final, vemos moradores correndo desesperados para coletar rações lançadas do céu por paraquedas. A cena é ao mesmo tempo angustiante e reveladora: um homem tenta usar um carrinho puxado por burros, enquanto outros correm a pé, competindo por restos de farinha misturados à areia. “Estamos pegando o que encontramos no chão. Precisamos comer”, explica um dos moradores.
Essa urgência permeia toda a obra. Os curtas revelam um mosaico de vidas interrompidas, mas também um retrato universal de resiliência. Apesar das limitações técnicas e artísticas, “From Ground Zero” transcende qualquer crítica convencional. É mais do que um filme — é um grito por sobrevivência e humanidade.
O Cinema como Empatia
Embora as histórias individuais não expliquem todas as conexões ou desfechos, esse elemento universaliza a experiência. A antologia nos lembra que, por meio do cinema, podemos sentir que algo tão distante nos pertence.
“From Ground Zero” é uma prova viva de que o cinema, mesmo em suas formas mais fragmentadas, pode carregar um poder transformador. Ele nos conecta à dor, à luta e à resiliência de pessoas que enfrentam o impensável, enquanto nos lembra que a arte continua sendo uma das maiores formas de resistência,